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Teatro Municipal São Luiz , Miguel Azguime Portrait

  • casa da música porto portugal (map)

PROGRAM


Ícone I
for vintage Tub and wood Stairs (1992)

Intermezzo from the opera A Laugh to Cry
for soprano & piano (2013)

De Part et d'Autre
for flute, clarinet, piano, violin, cello & live electronics (2011),

Trabalho Poético I: árvore
for voice, flute, clarinet, piano, violin, cello & live electronics    (2016)  
poemby Carlos de Oliveira

Mestre Gato ou o Gato de Botas (A PT) 
for flute, clarinet, violin, violoncello, reciter, piano & live electronics ((2009))
text by Charles Perrault

Sond’Ar-te Electric Ensemble

Pedro Neves- conductor
Camila Mandillo - soprano
Miguel Azguime - speaker
Sílvia Cancela - flute
Nuno Pinto - clarinet
Vítor Vieira - violin
Filipe Quaresma - violoncello
Elsa Silva - piano
João Dias - percussion
Paula Azguime - sound design

Miguel Azguime, criador-no-mundo por Pedro Boléo

Miguel Azguime é um caso singular, desde o princípio. Ou devíamos dizer “princípios”, no plural? O Miso Ensemble foi um ovni no panorama musical do seu tempo quando foi criado, por Miguel e Paula Azguime, em 1985. Era apenasum originalíssimo duo de flauta e percussão com nome de caldo japonês - uma dádiva dos deuses. O Miso descobriu entretanto muitos amigos, andou incansavelmente à procura de sons inauditos e de uma nova forma de criar. Os Azguimes improvisavam, amavam, compunham, encontravam cúmplices para derrubar as barreiras do som e da performance. Uma atitude que subvertia as ideias dominantes do que era a música nova e do que podia ser um concerto - ideias que nunca mais os largaram. Entretanto, desde meados dos anos 90, Miguel Azguime dedica-se a tempo inteiro à composição e menos à interpretação, mas sem deixar a paixão de actuar, subindo ao palco como performer, actor e narrador em algumas das suas obras.

Compositor a tempo inteiro? Como sobrou então tempo para um trabalho persistente e teimoso de divulgação da música contemporânea portuguesa e mundial (basta lembrar o festival Musica Viva, que está bem vivo), ou para dirigir artisticamente um dos mais entusiasmantes ensembles de música contemporânea dos tempos que correm, o Sond'Ar-te Electric Ensemble, que actuará num destes dois dias de aniversário? Aniversário, sim, porque são 60 anos de vida (e muitos a fazer música), mas sobretudo uma oportunidade de conhecimento e re-conhecimento vivo da sua obra. Miguel Azguime é um dos que seguiu a esteira de Constança Capdeville na recusa do tradicionalismo e do mofo, pela irreverência, pela pesquisa, pela invenção. Ao lado dos mais inquietos compositores e compositoras da sua geração e, para nosso bem, das gerações seguintes também.

O que se poderá ouvir no São Luiz nestas duas ocasiões são criações de um dos mais activos e inventivos criadores da actualidade. Azguime é um criador-no-mundo, atento aos perigos globais do não-pensamento, da estupidificação, do nivelamento e depreciamento das artes, da sua submissão mercantil ou do esquecimento e silenciamento daquilo que é, para ele, das coisas mais decisivas para o ser humano – uma arte livre.

Nas suas composições, para além da abertura de horizontes novos a partir das sementes lançadas pelo serialismo, pela música espectral, pela música concreta e pela evolução da electrónica, ouve-se uma alegria de inventar e descobrir qualquer coisa de inaudito em cada obra. Por isso se poderia invocar tanto as liberdades que tomou Beethoven há 200 anos atrás como a atitude de ruptura, sonho e liberdade dos poetas surrealistas. «Tout um royaume a l'envers à découvrir» («todo um reino ao avesso a desvendar»), como diz um verso de Mário Dionísio escrito em francês, por sinal uma das línguas mais queridas e usadas de Miguel Azguime.

Cada peça sua é um rasto e um sedimento, fruto de uma necessidade interior profunda, de um acto de paixão e metamorfose. E fruto de um trabalho poético sobre materiais concretos disponíveis – expressão, a seu modo, da capacidade humana de criar mundos e derrotar o vazio. É, no fim de contas, a presença concreta – aqui e agora – da chama inapagável da criação. Um fogo que arde e que se deixa ouvir. Mas também o artesanato delicado, rigoroso e feroz da matéria musical, no conflito poético com os difíceis tempos do presente. Uma criação musical para os outros e para hoje, mas sem concessões às modas e aos cânones.

Icon I, para percussão solo, com dorna (recipiente de madeira para armazenar uvas das vindimas) e escada de madeira, remete-nos para os princípios do Miso Ensemble, quando a composição emanava do acto de improvisar no(s) seu(s) instrumento(s) de eleição. Oportunidade rara de a ouvir ao vivo, agora pelas mãos do percussionista João Dias.

Intermezzo da sua última ópera, A laugh to cry, que ouviremos com a jovem soprano Camila Mandillo, é um dos momentos altos desta obra de 2013, um autêntico «aviso de incêndio» relativamente à destruição do planeta terra, desesperado e esperançoso.

De Part et d’Autre, de 2011, uma encomenda do Ministério da Cultura Francês, é uma obra-chave da fase mais recente do compositor, com amplificação e processamento electrónico de todos os instrumentos acústicos que compõem o ensemble. O Sond'Ar-te Electric Ensemble sabe fazê-la dando um novo sentido à palavra virtuosismo.

Trabalho poético I: árvore, para ensemble e soprano é a mais recente obra apresentada, escrita em 2016 a partir de um magnífico poema de Carlos de Oliveira, cúmplice poético e autor caro a Miguel Azguime, talvez também pela sua capacidade reflexiva acerca do que precede e do que irrompe no acto criativo: «As raízes da árvore/ rebentam/ nesta página/ inesperadamente».

Finalmente, Mestre Gato ou O Gato de Botas, um conto contado com som, para recitante, ensemble e electrónica. O famoso conto de Perrault revisitado por Miguel Azguime, deixando entrever o seu agudo sentido de humor.

Felizmente haverá ainda a inesperada reposição de Itinerário do Sal, uma Op-Era com história, fruto de um percurso e de uma reflexão profunda sobre o criador-no-mundo, mas ao mesmo tempo sem precedentes na criação portuguesa das últimas décadas. Um teatro em que os meios se conjugam, não para fazer fogo de vista, mas para pensar (com ajuda dos ouvidos) aquilo que está por fazer. Uma obra sobre o conhecimento de si mesmo e do mundo no próprio acto de desbravar caminhos através da música, dos sons, das imagens, da palavra. Da palavra, é preciso sublinhar, porque Miguel Azguime é ainda o poeta quase desconhecido que a sua Op-Era nos vai revelando. «Ópera», que designou há 400 anos o emergir de um novo teatro através da música, é agora reaberta por um hífen, num jogo que sugere que podemos abrir os olhos e os ouvidos ao que pode ser um «teatro-música» para os nossos tempos, feito de gesto, palavra, vídeo, música, movimento e meios electrónicos. Ópera incomum, que é também uma reflexão singular acerca da potência da criação e sobre o que é ser – hoje! – um criador e um autor. Muito mais do que um presente de aniversário, estes dois espectáculos são uma dádiva ao presente.


Pedro Boléo
jornalista e crítico de música

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