Miguel Azguime, criador-no-mundo por Pedro Boléo

Miguel Azguime é um caso singular, desde o princípio. Ou devíamos dizer “princípios”, no plural? O Miso Ensemble foi um ovni no panorama musical do seu tempo quando foi criado, por Miguel e Paula Azguime, em 1985. Era apenasum originalíssimo duo de flauta e percussão com nome de caldo japonês - uma dádiva dos deuses. O Miso descobriu entretanto muitos amigos, andou incansavelmente à procura de sons inauditos e de uma nova forma de criar. Os Azguimes improvisavam, amavam, compunham, encontravam cúmplices para derrubar as barreiras do som e da performance. Uma atitude que subvertia as ideias dominantes do que era a música nova e do que podia ser um concerto - ideias que nunca mais os largaram. Entretanto, desde meados dos anos 90, Miguel Azguime dedica-se a tempo inteiro à composição e menos à interpretação, mas sem deixar a paixão de actuar, subindo ao palco como performer, actor e narrador em algumas das suas obras.

Compositor a tempo inteiro? Como sobrou então tempo para um trabalho persistente e teimoso de divulgação da música contemporânea portuguesa e mundial (basta lembrar o festival Musica Viva, que está bem vivo), ou para dirigir artisticamente um dos mais entusiasmantes ensembles de música contemporânea dos tempos que correm, o Sond'Ar-te Electric Ensemble, que actuará num destes dois dias de aniversário? Aniversário, sim, porque são 60 anos de vida (e muitos a fazer música), mas sobretudo uma oportunidade de conhecimento e re-conhecimento vivo da sua obra. Miguel Azguime é um dos que seguiu a esteira de Constança Capdeville na recusa do tradicionalismo e do mofo, pela irreverência, pela pesquisa, pela invenção. Ao lado dos mais inquietos compositores e compositoras da sua geração e, para nosso bem, das gerações seguintes também.

O que se poderá ouvir no São Luiz nestas duas ocasiões são criações de um dos mais activos e inventivos criadores da actualidade. Azguime é um criador-no-mundo, atento aos perigos globais do não-pensamento, da estupidificação, do nivelamento e depreciamento das artes, da sua submissão mercantil ou do esquecimento e silenciamento daquilo que é, para ele, das coisas mais decisivas para o ser humano – uma arte livre.

Nas suas composições, para além da abertura de horizontes novos a partir das sementes lançadas pelo serialismo, pela música espectral, pela música concreta e pela evolução da electrónica, ouve-se uma alegria de inventar e descobrir qualquer coisa de inaudito em cada obra. Por isso se poderia invocar tanto as liberdades que tomou Beethoven há 200 anos atrás como a atitude de ruptura, sonho e liberdade dos poetas surrealistas. «Tout um royaume a l'envers à découvrir» («todo um reino ao avesso a desvendar»), como diz um verso de Mário Dionísio escrito em francês, por sinal uma das línguas mais queridas e usadas de Miguel Azguime.

Cada peça sua é um rasto e um sedimento, fruto de uma necessidade interior profunda, de um acto de paixão e metamorfose. E fruto de um trabalho poético sobre materiais concretos disponíveis – expressão, a seu modo, da capacidade humana de criar mundos e derrotar o vazio. É, no fim de contas, a presença concreta – aqui e agora – da chama inapagável da criação. Um fogo que arde e que se deixa ouvir. Mas também o artesanato delicado, rigoroso e feroz da matéria musical, no conflito poético com os difíceis tempos do presente. Uma criação musical para os outros e para hoje, mas sem concessões às modas e aos cânones.

Icon I, para percussão solo, com dorna (recipiente de madeira para armazenar uvas das vindimas) e escada de madeira, remete-nos para os princípios do Miso Ensemble, quando a composição emanava do acto de improvisar no(s) seu(s) instrumento(s) de eleição. Oportunidade rara de a ouvir ao vivo, agora pelas mãos do percussionista João Dias.

Intermezzo da sua última ópera, A laugh to cry, que ouviremos com a jovem soprano Camila Mandillo, é um dos momentos altos desta obra de 2013, um autêntico «aviso de incêndio» relativamente à destruição do planeta terra, desesperado e esperançoso.

De Part et d’Autre, de 2011, uma encomenda do Ministério da Cultura Francês, é uma obra-chave da fase mais recente do compositor, com amplificação e processamento electrónico de todos os instrumentos acústicos que compõem o ensemble. O Sond'Ar-te Electric Ensemble sabe fazê-la dando um novo sentido à palavra virtuosismo.

Trabalho poético I: árvore, para ensemble e soprano é a mais recente obra apresentada, escrita em 2016 a partir de um magnífico poema de Carlos de Oliveira, cúmplice poético e autor caro a Miguel Azguime, talvez também pela sua capacidade reflexiva acerca do que precede e do que irrompe no acto criativo: «As raízes da árvore/ rebentam/ nesta página/ inesperadamente».

Finalmente, Mestre Gato ou O Gato de Botas, um conto contado com som, para recitante, ensemble e electrónica. O famoso conto de Perrault revisitado por Miguel Azguime, deixando entrever o seu agudo sentido de humor.

Felizmente haverá ainda a inesperada reposição de Itinerário do Sal, uma Op-Era com história, fruto de um percurso e de uma reflexão profunda sobre o criador-no-mundo, mas ao mesmo tempo sem precedentes na criação portuguesa das últimas décadas. Um teatro em que os meios se conjugam, não para fazer fogo de vista, mas para pensar (com ajuda dos ouvidos) aquilo que está por fazer. Uma obra sobre o conhecimento de si mesmo e do mundo no próprio acto de desbravar caminhos através da música, dos sons, das imagens, da palavra. Da palavra, é preciso sublinhar, porque Miguel Azguime é ainda o poeta quase desconhecido que a sua Op-Era nos vai revelando. «Ópera», que designou há 400 anos o emergir de um novo teatro através da música, é agora reaberta por um hífen, num jogo que sugere que podemos abrir os olhos e os ouvidos ao que pode ser um «teatro-música» para os nossos tempos, feito de gesto, palavra, vídeo, música, movimento e meios electrónicos. Ópera incomum, que é também uma reflexão singular acerca da potência da criação e sobre o que é ser – hoje! – um criador e um autor. Muito mais do que um presente de aniversário, estes dois espectáculos são uma dádiva ao presente.


Pedro Boléo

jornalista e crítico de música

Miguel Azguime, creator-in-the-world

From the very beginning, Miguel Azguime is a singular case Or should we say “beginnings”, plural? Miso Ensemble was a UFO in the musical scene of its time. Founded by Miguel and Paula Azguime in 1985, it was just “a simple” - one of a kind - flute and percussion duo named after a Japanese soup – a gift from the gods. Along the way, Miso made a lot of friends, searched tirelessly for unheard sounds, and a new way of creating. The Azguimes were improvising, loving, composing, finding accomplices to break down the walls of sound and performance, an attitude that subverted the dominant ideas of what new music and concerts could be – an attitude they have nurtured since then. Meanwhile, since the mid-90’s, Miguel Azguime became a full-time composer, leaving the percussion player aside, but never letting go of his passion for performing, regularly going on stage as a performer, actor and narrator of some on his works.

Full-time composer? So, how did he find the time to make a persistent and obstinate effort to spread Portuguese and international contemporary music (one must only recall the Música Viva festival, which goes from strength to strength)? Or to artistically lead one of the most exciting contemporary music ensembles of our days, the Sond’Ar-te Electric Ensemble, who will be performing on one of these two days of birthday celebrations? This is not only an opportunity to celebrate his 60th birthday (of which many, making music), but also and above all, an opportunity to discover and re-discover  his vibrant work. Miguel Azguime is one of those people who followed in Constança Capdeville’s footsteps by refusing the traditional and musty outlines, choosing audacity, exploration and invention alongside with the most restless composers of his and – fortunately for us – the following generations.

What you can hear at São Luiz in these two upcoming events are works by one of the most active and inventive creators of our time. Azguime is a creator-in-the-world, attentive to the global dangers of non-thinking, of stupidity, of flatening and depreciating the arts, in its submission to market demands or forgetting and silencing what is, to him, one of the most essential things for the human being – free art.

In his compositions, besides new horizons that flourished from the seed sown by serialism, spectral and concrete music and the evolution of electronics, one can hear the joy of creating and discovering something previously unheard in his works. In them, we feel both Beethoven’s freedom of creation from200 years ago as well as the disruptive, dreamlike freedom of surrealist poets. «Tout un royaume a l'envers à découvrir» («A whole kingdom upside down to discover»), says one of Mário Dionisio’s verses, originally written in French, one of Miguel Azguime’s most loved and used languages.


Each work is a trail and a sediment that arose from a deeper need - an act of passion and metamorphosis. The child of a poetic work about existing concrete materials – in a sense, an expression of the human capacity to create new worlds and defeat the vacuity. It is, after all, the concrete presence – here and now – of the unstoppable flame of creation. A fire that burns sounds. But it is also the delicate, sharp and fierce crafting of musical substance, in a continuing poetic conflict with the hardships of our time. A musical creation for others and for today but never bending to trends or canons. 


Icon I, for solo percussion, exploring a dorna (a wooden vat to store grapes after the harvest) and wooden stairs, takes us back to the time of Miso Ensemble’s foundation, when the compositions thrived from improvising with his favorite instrument. This is a rare opportunity to listen to it live, performed by João Dias.

The Intermezzo of his last opera, A laugh to cry, performed by the young soprano Camila Mandillo, is one of the highlights of this work from 2013, a real «fire hazard warning» concerning the destruction of planet Earth, both desperate and hopeful.

De Part et d’Autre (2011), commissioned by the French Ministry of Culture for Ensemble Court-Circuit, is a key-work of the composer’s more recent period, exploring the amplification and electronic processing of every acoustic instrument in the ensemble. The Sond'Ar-te Electric Ensemble knows how to play it, giving new meaning to the term «virtuosity». 

Trabalho poético I: árvore, written in 2016 for ensemble and soprano, is the most recent work presented. It is based on a magnificent poem by Carlos de Oliveira – partner in poetry and an author dear to Miguel Azguime –, perhaps because of his ability to reflect on what precedes and breaks out in the creative act: «The roots of the tree/ burst out/ onto this page/ unexpectedly».

And finally, Mestre Gato ou O Gato de Botas (Puss in Boots), a tale told through sound, for narrator, chamber ensemble and electronics. Perrault's famous tale revisited by Miguel Azguime, unveiling his keen sense of humor.

Fortunately, there will still be an unexpected opportunity to see Itinerário do Sal (Salt Itinerary) again, an Op-Era with history, a product of the profound reflection on being a creator-in-the-world, and unprecedent in the Portuguese panorama of the last decades. A play where all the elements combine, not to impress but to compel us to think (with our ears) about what is still left to do. A work about recognizing oneself and the world in the act of clearing new paths through music, sound, image, and the word. An emphasis on word is necessary, since Miguel Azguime is the yet to be known poet that this Op-Era slowly reveals. The «Opera», which emerged from an innovative type of theatre through music 400 years ago, is now renewed with an hyphen, in a word game that entices us to  open our eyes and ears to what can be named  «theatre-music» of our time, made of gestures, words, video, music, movement and electronics. A singular opera, and a rare reflection on the power of creation and what it means to be a creator and an author today. Much more than a birthday gift, these two performances are a gift to our times.